sexta-feira, 31 de julho de 2009

O Caso da Bolsa de Vime

Um conto de Réveillon
© Soaroir de Campos
Agosto de 2008


Era tarde de 31 de dezembro de 1991 quando Mariazinha voltou para casa e pela primeira vez percebeu o espaço que o silêncio ocupa. A casa parecia não ter paredes nem teto. Era um enorme vão sem distinção de cômodos. Embora não ficasse na “Rua dos Bobos” e nem fosse o “número zero”, para ela naquela casa também faltava o chão.

Num acesso de desassossego, num só impulso, Mariazinha embrenhou-se guarda-roupa adentro e abriu a tão conhecida e surrada bolsa de vime com alças de madeira escura. Olhou, esvaziou tudo no chão. Não conformada, abriu um bauzinho de estimação e também todas as gavetas. Não era possível que nada tivesse sido deixado para justificar a partida de sua mãe, se remoía. Uma carta, pelo menos um bilhete de adeus Mariazinha esperava encontrar. Não concebia uma mãe partir assim sem se despedir da sua primogênita. A dor pela falta de consideração se confundia com a dor da ausência em si.

Nas ruas já comemoravam o novo ano. Uma banda na calçada tocava, entre algumas marchinhas, “Jingle Bells”, apesar de o Natal já ter passado, enquanto senhores musicistas aposentados angariavam fundos para as suas “Boas Festas”. Um cheiro forte de pernil assando saía do hall do elevador e impregnava o espaço que outrora fora um lar e em cuja mesa agora sobraria uma cadeira. O vestido branco que acabara de comprar para festejar a virada sequer desembrulhou. Mariazinha jogou-se num canto da sala e chorou. Chorou todos os 40 anos, nos quais fingiu ser forte e destemida. Chorou um choro que vinha do útero e que lhe descia ardido pelos olhos. Como sonâmbula, se levantou e percorreu cada espaço ainda à procura de alguma coisa escrita que a confortasse ou que pelo menos amenizasse a dor daquela partida, cujo desespero sequer em sonho imaginou sentir. A tarde já perdia o tom amarelado de verão e Mariazinha, que já nem sabia mais o que procurava, seguia procurando. Só procurava. Levantou os lençóis, a toalha da mesa, procurou entre as panelas e na dispensa. Esvaziou todos os guardados até que a casa ficasse cheia da desarrumação. Tudo espalhado pelo chão e nenhum aviso prévio para aquele sumiço.

Aos poucos as paredes e o teto e os móveis foram voltando para seus lugares. Ela começou a recolher tudo o que ela havia espalhado e voltou ao sofá. Sobre o Fritz Dobbert aberto, contrastando com a madeira bem conservada e as teclas de marfim, repousava uma partitura já amarelada: “Réquiem em Ré Menor”:
I. Introitus
Requiem aeternam dona eis, Domine,
Et lux perpetua luceat eis.
Te decet hymnus, Deus, in Sion,
Et tibi reddetur votum in Jerusalem:
Exaudi orationem meam,
Ad te omnis caro veniet.
Requiem aeternam dona eis, Domine,
Et lux perpetua luceat eis.

Em um aparador à esquerda, entre um porta-lápis e um solitário de fino cristal, outras peças de Mozart a olhavam de esguelha. Mais adiante a cristaleira, com a sua coleção de xícaras de todo o mundo, parecia zombar da situação.

Alheia a qualquer censura, Mariazinha segurou contra o peito a bolsa de palha e, numa última vã tentativa, abriu-a. Recolheu do chão seus bens deixados sem testamento e recolocou-os em seu “cofre” de vime: uma cruzinha de madeira arrumada com uma fina linha vermelha, uma folha de louro seca e desbotada pelo tempo e um espesso e prateado espelhinho retangular. Nenhum bilhete. Como uma autista, pendulando-se em seu próprio tronco, ali ela ficou até perder a noção do tempo, quando foi distraída de seu sonambulismo por uma mensagem: - “Filha, você se esqueceu de que eu era analfabeta?”.
Fim.
(mini conto apresentado na 10ª Edição "Talentos da Maturidade " do Banco Real)

Soaroir
Publicado no Recanto das Letras em 23/12/2008
Código do texto: T1349685

Algumas Palavras

I
CONTOS MINIMALISTAS Teoria


"Você pode pensar em escrever uma média de dez a quinze linhas. Há quem estenda os minicontos até uma página, porém. Os de uma linha também são chamados de microcontos, só para se ter uma idéia de que essa nomenclatura tem mesmo a ver com sua dimensão.

Os teóricos do miniconto costumam, em nome de uma “estética da brevidade”, dizer que se trata de um gênero que vem ao encontro de nossa vida loca: de nosso culto da velocidade e de nossa cultura do impacto. Esta, porque um dos segredos e uma das recorrências do miniconto, é a surpresa do fim do texto. Com a vantagem de não se precisar ler 345 páginas até chegar a ela.

Dá para comparar um miniconto a uma boa piada. Esta não pode ser comprida demais senão a atenção de quem a ouve vai para o espaço. Há uma história, na anedota, que pega o ouvinte de cara, desenvolve-se e fecha com uma frase surpreendente ou por uma situação inesperada dos personagens, provocando o riso pela surpresa. O miniconto, como qualquer ficção curta, tem de pegar o leitor de cara, com recursos expressivos capazes de interessá-lo a seguir o desenvolvimento da história até chegar a uma reviravolta que provocará a surpresa e que geralmente é o objetivo do escritor.

A fração de uma idéia

Quais são os truques para escrever o miniconto? Algo como um de Juan José Arreola: “A mulher que amei, se transforma em fantasma. Eu sou o lugar das aparições”? Comece, antes de mais nada, por uma idéia pequena. Tome alguma idéia grande e procure pelas menores que existem dentro dela. Por exemplo, para discutir a inter-relação de pais e filhos, você não precisa escrever um complexo romance de muitas páginas.

Pegue as idéias menores que há nesse grande tema. Assim, como as crianças se sentem quando ficam à margem de uma conversa entre adultos? Ou o que elas fazem quando estão chateadas no banco traseiro de um automóvel? Se aparece um mau boletim. Os sentimentos de um filho do meio, e um grande etc.

De cara, você tem de se concentrar no fato de que não tem duas páginas para explicar todo o começo de uma história. Descubra um jeito de colocar tudo em um parágrafo. Daí, conte o resto.

O começo sem preâmbulos

Uma boa maneira é começar a história no meio da ação. Nada de preâmbulos: mostre um homem que está correndo, uma bomba está explodindo, um monstro está surgindo. Só descreva o que for necessário, pois o leitor irá preencher as lacunas. Bom recurso para isso é recorrer a um cenário que o leitor conheça e você não precise descrever, como por exemplo um jogo no Maracanã, um acontecimento num teatro, por aí. Da mesma forma, uma imagem poderosa ajuda, para focalizar a história, como uma rua arrasada pela guerra.

A reviravolta final

O xis da questão com o miniconto são dois: o começo e o final. A não ser que você tenha facilidade para o conto equivalente ao disparar de um flash, como o célebre de Ernest Hemingway: “Vende-se: sapatos de bebê, sem uso.” Para o final, é recomendável a tal da reviravolta, como no conto convencional ou na crônica. A reviravolta surge, geralmente, porque o miniconto não tem tempo nem espaço para mostrar como a trama afetou os personagens. Uma boa frase pode resolver sua história e carregar sua mensagem.

O absurdo com humor

Pense no miniconto como um corte de uma história maior, uma fatia de bolo que tem os ingredientes para dar uma boa idéia do sabor do bolo todo. De certa forma, uma fatia de vida. Nele, você dá ao leitor uma leitura rápida com todo o prazer da ficção. É um gênero perfeito para você explorar sua criatividade e contar histórias de um ponto de vista extremamente diferente, até mesmo absurdo.

O absurdo, como o humor, é difícil de praticar em textos mais longos e cabe como uma luva no miniconto. Ele serve ainda como um ótimo exercício de criação: obriga a usar poucos advérbios e poucos adjetivos e a empregar verbos de ação. Confira, por exemplo, este de Cíntia Moscovich: “Uma vida inteira pela frente. O tiro veio por trás.”

Escrever é cortar

O primeiro-ministro inglês Winston Churchill deu certa vez um sábio conselho: “Das palavras, as mais simples. Das simples, a menor.” O que é absolutamente perfeito para quem escreve minicontos. Afinal, o gênero não serve para mostrar um extenso vocabulário ou virtuosismos. No miniconto contam mais a criatividade e a possibilidade de narrar uma história em espaço limitado. O que não quer dizer pobreza de recursos expressivos, mas, sim, a aplicação de uma regra que serve para todos os gêneros: escrever é selecionar."

Fonte: http://subrosa3.wordpress.com/2007/07/22/historias-em-apenas-uma-linha/
Soaroir
Publicado no Recanto das Letras em 16/03/2008
Código do texto: T903412


II


"A Casa das Mil Portas é projeto com centenas de microcontos escritos por blogueiros brasileiros e portugueses. Um microconto é, ao menos na nossa definição, uma história em prosa contada em cinqüenta letras ou menos. Se parece pouco é porque é realmente pouco. Fazer um microconto é um desafio literário, uma tentativa extremamente econômica de contar ou sugerir uma história inteira. Um microconto exemplar, e possivelmente o mais famoso de todos, é do escritor guatemalteco Augusto Monterroso: "Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá."
Aqui, cada microconto tem sua própria página, onde aparece o texto e o nome do autor, com um link para o seu weblog. Há também um link para outro microconto escolhido aleatoriamente. Como o microconto seguinte é sempre selecionado ao acaso, pela mágica do php, cada visita será diferente e mostrará os microcontos numa nova seqüência. Clicando na casinha do alto da página, é possível voltar ao início e recomeçar a explorar a Casa das Mil Portas"
fonte: http://www.nemonox.com/1000portas/projeto.html

Contos Minamalistas

A casa de Caçoleta
By: Soaroir

Numa velha máquina Singer ela fantasiava a redondeza para as missas de domingo, até quando a casa se encheu para orar por sua alma.

meretriz não entra em igreja nem morta



Outro mini Conto


Medida Cautelar
Soaroir 9/6/07 - 14:45

O espelho e um homem alquebrados não se entendiam.
Sem dó nem piedade veio a sentença:
“não te reconheço”,ouviram.
Sem refletir se partiram.

in: poesia on-line "Visão do Futuro"-adaptação.